O Exército brasileiro não vive um bom momento. Nesta enchente do Rio Grande do Sul com milhares de desabrigados, desaparecidos e quase uma centena de mortos, os militares ficaram mal vistos pela inoperância no atendimento à população. Antes desta tragédia já teriam ameaçado encaminhar para a polícia quem falasse mal da Força Armada pela Internet.
Tanto que passou em branco o 19 de abril, considerado o Dia do Exército, em comemoração à data da Batalha dos Guararapes em 1648 que derrotou o invasor holandês em Pernambuco.
A força militar organizada localmente que conseguiu expulsá-los foi o embrião do Exército de hoje, que já foi visto como uma instituição com muita credibilidade junto aos brasileiros, majoritariamente entre os conservadores. As pesquisas de opinião nos tempos mais recentes sempre apontavam essa característica positiva, o “Exército Herói”.
O desencanto com o Exército veio nos episódios pós-eleitoral de 2022. Quando em dezembro os conservadores, perdedores da eleição, procuraram os quartéis inadvertidamente esperando a “mão amiga e o braço forte” para tirar dúvidas sobre o resultado do pleito.
Nada disso aconteceu. Pelo contrário, os abrigados diante das instalações militares foram acusados do quebra-quebra do 8 de janeiro em Brasília – a maioria sem qualquer culpa – e levados ao cárcere e à consequente condenação pelo STF.
A partir daí, a força passou a ser vista pelos conservadores como o “Exército Vilão”. Ele deixou de ser bem visto pelo grupo que o apoiava e passou pragmaticamente a ser instrumento político do grupo, à esquerda, que o execrou por décadas. A bipolaridade dos militares entre feitos heroicos ou vilanescos não é coisa nova. Está na inspiração daqueles que formaram a força originária.
Os comandantes das tropas brasileiras no combate aos holandeses João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros merecem estar no livro dos heróis, o Livro de Aço dos Heróis da Pátria. Mas só nesse. Suas ações depois como comandantes-gerais em Angola não fazem jus ao que fizeram aqui.
Na África foram impiedosos com as tribos e reinos angolanos, promovendo massacres e capturando escravos para o envio ao Brasil por ordem do rei de Portugal. Na verdade, Pernambuco não se tornou independente com a saída dos holandeses.

Só voltou aos antigos patrões, os portugueses. E a própria insurreição começou com o descontentamento dos donos de engenhos de açúcar com os holandeses. Não havia condições para eles pagarem os empréstimos. Vale destacar a folha corrida de João Fernandes Vieira, descrita pelo jornalista e escritor Leonardo Dantas Silva, no seu excelente livro, “Holandeses em Pernambuco”.
Vieira, madeirense de origem humilde e pai desconhecido, nascido em Funchal em 1610, sozinho emigrou para Pernambuco aos dez anos. Trocou de nome e passou a se apresentar como João Fernandes Vieira.
Em pouco anos tornou-se feitor-mor, fazendo crescer sua riqueza graças aos esforços e doações recebidas do seu empregador Affonso Rodrigues, bem como da sua amizade com o conselheiro político holandês Jacob Stachhouwer, “homem de baixa moral que se apropriara de uma vasta propriedade de um rico judeu português”.
Em poucos anos tornou-se Vieira proprietário de cinco engenhos. Lambe botas dos holandeses, em 1642, a sua dívida com a Companhia das Índias Ocidentais era a segunda da lista de brasileiros devedores. Nada foi pago. A guerra contra o invasor foi uma solução. Ao morrer, em Olinda, em 1681, ele era proprietário de 16 engenhos e muitos currais de gado.
André Vidal de Negreiros nasceu no Engenho São João, na Paraíba, nunca se casou e deixou vários filhos bastardos. No contexto da luta contra os holandeses, começou atuando na Bahia, depois participou de todas as fases da Insurreição Pernambucana, quando mobilizou tropas e meios no Sertão nordestino.
Como os outros insurretos, lutou bravamente em batalhas que aos derrotados não cabia a rendição, só a morte por degola. O clima e os trópicos favoreceram aos “brasílicos” nas guerrilhas e emboscadas. Vitoriosos em 1654, os comandantes João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros partiram para voos mais altos.
Primeiro governando províncias do Norte e Nordeste até, por determinação do rei de Portugal, serem nomeados comandantes-gerais em Angola, em tempos distintos. Primeiro Vieira de 1658 a 1661 e depois Negreiros de 1661 a 1666.
Ser enviado a Angola significava acumular mais riquezas no comando de uma guerra colonial contra os nativos que se negavam à vassalagem. Os dois comandantes levaram vantagem sobre os comandantes anteriores, suas tropas levadas de Pernambuco estavam adaptadas ao clima, às doenças tropicais, ao massacre de indígenas e de quilombolas, diferente dos soldados lusos vindos da Europa.
André Vidal de Negreiros, como comandante dos “brasílicos”, venceu a batalha de Ambuíla, em 1665, quando destruiu o Reino do Congo, matando o rei, sua família, membros da corte e aliados. Foi o maior embate colonial na África desde Alcácer-Quibir, em 1578. De acordo com o historiador Luís Felipe Alencastro, precipitou o declínio dos reinos do Congo e Matamba, da sucessora da mítica Rainha Jinga de Angola.
Portanto, o conceito de heróis é fluído e relativo. Vieira e Negreiros, os dois heróis pernambucanos foram comandantes de massacres de africanos, que, como eles, lutavam contra o invasor, desta vez vindo de Portugal. E quais foram os vilões ou “heróis” do janeiro de 2023? Coisas da história e da vida.
Por: Antonio Magalhães – Diretor de redação de O Poder