BOLO DE NOIVA: TRADICIONAL RECEITA ESTÁ PRESTES A SE TORNAR PATRIMÔNIO DE PERNAMBUCO

Uma sobremesa que, a exemplo de um bom vinho, sabe envelhecer. Símbolo de tradição e longevidade, assim podemos definir o bolo de noiva pernambucano. A receita tão cultuada ao longo dos séculos, do Litoral ao Interior do Estado, está prestes a se tornar Patrimônio Cultural Imaterial de Pernambuco, um título que reconhece a necessidade de salvaguardar seus saberes e fazeres.

Já aprovado pela Assembleia Legislativa de Pernambuco, o título aguarda o relatório da Fundação do Patrimônio Histórico de Pernambuco – Fundarpe , em fase final de análise e a aprovação do Conselho de Cultura.  Informações são da Folha PE.

ORIGEM
Segundo a escritora e pesquisadora de Gastronomia Lecticia Cavalcanti, a receita aportou em Pernambuco com os ingleses, no início do século 19. O bolo tradicionalmente servido no Natal da Inglaterra, conhecido como Christmas Cake, tem ingredientes e modo de preparo semelhantes. Em terras pernambucanas, no entanto, sofreu adaptações sincréticas antes de chegar à receita que conhecemos atualmente.

“No Brasil, os bolos de casamento têm preparos diferentes. No Sul, com massa branca e recheios variados – ainda herança do colonizador português. Diferentes dos de Pernambuco, com massa escura à base de vinho, ameixas, passas e frutas cristalizadas – herança britânica que chegou a bem poucos lugares do Brasil”, escreve Lecticia no livro “História dos sabores pernambucanos”.

A receita inclui manteiga, açúcar, ovos, limão, noz-moscada, cravo, canela, ameixa, frutas cristalizadas, passas, conhaque, vinho do Porto e farinha. Pelo seu teor alcoólico e grande quantidade de açúcar, o bolo de noiva tem grande capacidade de conservação, sendo tradição guardá-lo no freezer por anos, tradição até hoje praticada pelos ingleses, a exemplo dos bolos das cerimônias da Família Real.

INFLUÊNCIAS INGESAS E EUROPEIAS

Outros indicativos da herança inglesa é a presença da pasta de amêndoas e o glacê mármore branco que remontam à época da rainha Vitória, levada à Península Ibérica em 1906 por meio de um casamento da realeza. Segundo Natacha Chevalier (2014), o bolo de casamento inglês se assemelha ao “bolo do décimo segundo dia” no reinado vitoriano. Esse bolo foi resgatado como símbolo do costume e tradição.

Rico em frutos secos e especiarias que traduziam bem a história do povo britânico, a cobertura do bolo do décimo segundo dia o diferenciava: massa de amêndoas geralmente colorida de rosa com cochonilha. Sua decoração era preparada com pasta de açúcar moldável com a qual se podia retratar acontecimentos históricos. 

A inclusão do vinho do Porto à receita no bolo de noiva pernambucano, em adição ou substituindo o conhaque da receita inglesa, também indica a influência de Portugal na construção dessa sobremesa no Brasil, bem como a de outras culturas europeias.

DESAFIOS

A partir de pesquisa sobre a história do bolo de noiva pernambucano, produzida a partir de eventos que reúnem as boleiras tradicionais do Estado na Faculdade Senac, a professora de Gastronomia da Faculdade Senac Cristianne Boulitreau de Menezes Barros, sugeriu ao deputado Fabrizio Ferraz (PP) um Projeto de lei (PL) para tornar o bolo de noiva Patrimônio Cultural Imaterial de Pernambuco, já publicado na Resolução nº 1.744/2021, de 1º de julho de 2021.

“O bolo de noiva está nas famílias, nas comunidades, e eu não entendia porque ele não é reconhecido. Agora ele se encontra na Fundape. Em 2019 foi regulamentada uma Lei que dizia que todo produto para ser considerado Patrimônio Cultural e Imaterial de Pernambuco teria que passar por uma avaliação da Fundarpe, para saber se existia uma comunidade produtiva, que de fato existe”.

“O bolo de noiva, além de ser único em Pernambuco ele carrega três culturas: a própria cultura do bolo, a cultura da cana-sacarina viva – porque ele é coberto com 1 ou 2cm de açúcar e a terceira é a homenagem que ele faz às rendeiras pernambucanas”, detalha a professora.

Apesar de ter reunido registros de inúmeras boleiras da Capital e Interior, que comprovam sua forte presença como atividade econômica e cultural no Estado, Cristianne Barros aponta para algumas dificuldades para o reconhecimento desse título.

“Cada boleira assina uma receita. Isso é o que torna difícil o reconhecimento dela como um produto patrimonial. Mas para ser patrimônio, a gente tem que salvaguardar os saberes e os fazeres. As receitas de bolo de noiva sofrem versões e modificações de acordo com a regionalidade. Por exemplo, na Zona da Mata e Agreste incorporaram o creme de goiaba ao bolo de noiva”, aponta.

TRADIÇÕES FAMILIARES

O compartilhamento de saberes por gerações e a demanda dos consumidores são fatores que ajudaram a adaptar a receita ao longo dos anos. “O bolo de noiva é tipicamente pernambucano. Minha mãe era boleira, se chamava Maria Nazareth Beirão Boulitreau.

“É muito comum frutas secas dentro desse bolo. Cada boleira passou a adaptar sua receita de acordo com o gosto particular de sua clientela. Se o cliente não gosta, por exemplo, de frutas cristalizadas, ela reduz na receita. Mas o importante é que ela deixe os ingredientes principais desse bolo, que são o vinho, as frutas cristalizadas, as uvas passas e as ameixas”, comenta a professora.

“Eles [os bolos de noiva] foram evoluindo com o tempo, sempre mantendo a nobreza e o simbolismo”, escreve Lecticia Cavalcanti. Há ao redor do bolo, uma liturgia que marca o matrimônio, destaca”.

SEGREDOS DA RECEITA

Ao contrário das boleiras tradicionais que guardam os segredos de suas receitas a sete chaves, Cris Barros é generosa em divulgá-los, como boa pesquisadora, para o bem da tradição.

“O primeiro passo da receita é deixar as frutas e as uvas passas macerando no vinho. Tem boleiras que deixam por 24h, tem boleiras que deixam por 72h, tem boleiras que deixa por um mês, dois meses e até seis meses. E isso faz muita diferença”, atesta.
 
“O segundo passo é realizar o doce de ameixa e deixar aquela calda grossinha, que depois você machuca com o garfo. Tem boleiras que processam. Depois disso é bater bem a manteiga com açúcar. Na época da minha mãe, ela batia bem primeiro as gemas e só depois incluía o açúcar. Hoje, as boleiras não seguem mais essa tradição. Outras colocam os ovos inteiros, um a um”, detalha.

“O glacê mármore tem um sabor cítrico, de limão. Sua acidez completa o doce do bolo. Os pernambucanos são apaixonados por esse glacê. As pessoas quando vêem de fora o bolo todo branco e ao cortar notam a massa escura, se chocam, mas depois que comem, se encantam.

“Há várias técnicas de cocção no forno. Minha mãe fazia o bolo totalmente em banho maria, por cinco a seis horas. Já outras boleiras colocam uma caldeira de água quente dentro do forno para deixar ele úmido e atingir a cremosidade e umidade do bolo. Tudo isso, com o passar dos anos, cada boleira foi criando sua receita e sua técnica”, frisa.

“Tem boleira que nem usa fermento, porque ela quer a massa pesada e densa”, conta. Se você comer hoje não vai ser a mesma coisa de comer amanhã de manhã, porque o bolo vai estar frio e apurado. Por isso é essencial deixar as frutas macerando por mais tempo, porque já entra no bolo com um sabor diferenciado”, explica Cris Barros.

Fotos: Ed Machado/Folha PE

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